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Pão Dormido

O pão estava com muito sono. Já tinha amanhecido lá, no balcão da padoca e não havia sido tocado por mãos humanas nem uma vez depois de tirado da fornalha. Passou a noite inteira ali. Conversou um pouco com os outros pães restantes, mas eles queriam dormir e logo mandaram ele calar a matraca. Ficou quieto, triste e pensando no que aconteceria com ele no dia seguinte. A madrugada demorou a passar.
Tinha saído do forno lá pelas sete da noite. A última fornada! Poucos clientes compraram poucos pães. Não chegou a vez dele. A padaria encerrou suas atividades do dia. Fechou-se o pesado portão. Estabeleceu-se um breu sepulcral no recinto. Os pães, habitantes do cestão desprezado, tavam se cagando de medo, mas logo acostumaram-se aos seus destinos e decidiram dormir para a noite passar mais rápido e a manhã conclusiva chegar de supetão e ninguém ter tempo de chorar, suplicar ou implorar diante do fim certo e dramático. Mas aquele pão não conseguiu dormir. Tornou-se um pão dormido sem ter dormido de fato. Era um pão amanhecido com olheiras.
Por fim, iniciou-se o dia, as portas foram escancaradas, o padeiro bigodudo entrou falando alto. Novos pães seriam assados. O homenzarrão pegou a cesta de ontem, onde estava o pão insone, e despejou o grupo de quinze pães dormidos, que agora estavam bem acordados, numa imensa tábua usada para cortes e serramentos. Foram todos fatiados por uma gigantesca faca de pão, que reluzia à luz da lâmpada fluorescente do teto da cozinha. Depois, colocados em uma assadeira antiga, untados com azeite e polvilhados de orégano. O pão (que já não era mais pão, apenas um lembrete do que tinha sido) encontrava-se num estado de estupor, não reconhecia mais os companheiros remanescentes de sua fornada, tentava encontrar seus pedaços, olhava ao redor e via apenas fatias e mais fatias dispostas em fileiras. Abriu-se a porta do forno. Esse ele não conhecia. Devia ser o forno final. Aquele de que tanto falavam. O derradeiro assamento no qual o resto dos pães de ontem, agora cortados em inúmeros pedaços, transformaria-se em algo novo. Algo que o pão não havia imaginado. O produto final da fornada: a torrada.

 

Handebol de Areia

Chego em casa de noite. Desespero. Nada pra fazer. Nada na tv. Mudo de canal freneticamente. Só avião caindo, míssil explodindo, a mesma guerra de sempre, gente morrendo a rodo e a vareio. A invencível merda habitual. Até que… Paro no canal de esportes e tá passando Campeonato Mundial de Handebol de Areia! Caraio, nem sabia que existia handebol de areia! O jogo é Brasil e Noruega. Detalhe: feminino. As jogadoras usam o mesmo traje das que jogam vôlei de praia: uma espécie de maiô apertado e arisco que, vez ou outra, se enfia no rabo da atleta; tem umas que ficam o jogo inteiro nessa situação, num tipo de fio dental improvisado; já algumas preferem puxar o teimoso tecido toda hora que ele se esconde bunda adentro. Putz, eu já gostava de assistir vôlei de praia feminino; agora, com o handebol a situação é bem melhor. No vôlei são só duas jogadoras em cada time; no handebol são cinco! Puta delícia! A melhor experiência esportiva que tive em anos. A seleção do Brasil se esgoelando contra a seleção da Noruega, que se esgoelava também, num esforço saboroso, de dar água na boca. Puta merda! A tv ainda pode ser divertida! Existe alguma esperança pra humanidade! Handebol de areia feminino é a melhor coisa televisiva que descobri neste século. Aquele monte de carne à milanesa, pulando, dando rodopios no ar, apertando a bola. Não teve jeito, tive que bater uma bronha.


Frango Assado

O frango foi assado. Virou incontáveis vezes na máquina apreciada por cachorros e transeuntes. A bela máquina. Tem que estar à vista. Não pode ficar escondida. O espetáculo molhado, abafado, cheiroso, deve perdurar. Os frangos, lado a lado. Assando, suando, conquistando. O cheiro convidativo da manhã de sábado. A rua efervescente. O frango no ar. Conversas, buzinas e chamadas radiofônicas disputam a atenção, mas nada impacta a mente como a visão hipnótica de um frango sendo assado em uma máquina giratória. A resposta é imediata. A boca saliva. As narinas dilatam. Os ouvidos procuram, de maneira meio insana, ouvir o inaudível ranger do espeto que continua a virar. Os olhos contraem-se em busca da esquina, da porta de açougue, restaurante, bar, boteco ou padaria de onde origina-se a miragem urbana. A cabeça pensa, imagina, formula uma ideia, um conceito, uma especulação: não sei porque tô com vontade de comer frango com farofa no almoço.

 

Enrolado de Rodoviária

Mais uma vez o enrolado é olhado. Jeremias passou novamente na frente do balcão. Os salgados estão ali, dispostos um do lado do outro dentro da incubadora térmica de vidro transparente. O vidro encontra-se levemente embaçado. Sinal convidativo de que os salgados estão quentes e frescos. Ele passa de novo ali. O ônibus vai demorar ainda uns quinze minutos pra sair. Dá tempo de comer um salgado. Os salgados de rodoviária estão entre os melhores da categoria. Rodoviárias, geralmente, têm boas cantinas e lanchonetes. É meio caro, mas vale a pena. Jeremias repete a olhada fatal e decisiva para o enrolado de presunto e queijo. Não dá pra segurar, a fome apertou. Vou comer essa porra logo, pensou avidamente. Dirigiu-se ao balcão. Um enrolado de presunto e queijo, por favor. Pegou. Apertou. Era firme, consistente e estava fervendo. O tamanho era bom. Parecia ser bem recheado. Apertou de novo. Agora, o teste final. A mordida. Mordeu, queimou um pouquinho a boca. O negócio tava fumegando, parecia proveniente das labaredas infernais do forno de Satã. Bom. O gosto era magnífico! Muito bom. Até esqueceu a merda do ônibus e a porra da viagem. Pelo buraco da mordidela pôde ver o recheio farto e delicioso. Como será que faziam um bagulho bom desse? Pra vender; pra qualquer desalmado filho da puta que tá viajando no inferno de qualquer feriado maldito; pra qualquer bêbado que encheu a cara no boteco podre do lado da rodoviária e que depois despeja o seu conteúdo na pia do banheiro público ou na cadeira de espera mesmo. Quem será que faz esse alimento tão bem acabado e tão saboroso? Deve ser uma mulher com mãos de deusa. Tipo uma tia, ou vó ou mãe mesmo. Homem não deve ser. O salgado não seria gostoso, macio, delicadamente temperado e generosamente recheado assim. Seria duro, seco e sem recheio, se feito por mãos masculinas. Os homens só fazem pra vender; já uma mulher que sabe cozinhar, faz pra alimentar mesmo, como se fosse um ato de caridade ou compaixão. Jeremias não queria imaginar um homem fazendo o salgado. Enrolando o presunto e queijo com suas mãozorras de marmanjo filho da puta. Deixe pra lá, é melhor não pensar em nada. A merda do ônibus já deve tá chegando pra sair. Puta salgado bom! Depois de aproximadamente dez mordidas, o enrolado foi devorado. Iria ser digerido na viagem, ao som de conversas alheias, choro de criança e gente falando merda até não poder mais.

 

A Vida dos Salgados

O enrolado de presunto e queijo sempre foi amigo da esfirra. Nunca se deu bem com o quibe, mas tinha uma queda pela coxinha, que nunca lhe deu bola. Achava que o pão-de-queijo era um antipático falastrão. Batia muitos papos com o pastel amanhecido de tarde. Conversava sobre ideias existenciais e filosóficas com o enrolado de calabresa. Não conhecia o croquete direito, mas pensava ser um bom sujeito. Às vezes, topava com a fatia de pizza, que passava apressada e fumegando. Nunca mais viu a torta de frango.

 

Mussarela

Minha mente não pára (pára com acento mesmo, desrespeitando essa nova regra gramatical completamente idiota que só confunde o leitor).

Ela pensa em mussarela (com dois ésses porque com cê-cedilha é uma merda).

 

Buraco Quente

Hoje lembrei de um sanduíche de muito boa fama. O Buraco Quente. O Buraco Quente é um pão francês recheado com carne moída, com ou sem molho. O afamado pão com carne moída. Faz muito sucesso em festas religiosas e casamentos. É um salva-vidas quando se trata de um momento em que há fome, mas não se sabe o que comer. Qual é a primeira coisa em que se pensa? Num Buraco Quente, logicamente. Daí é só comprar uns filões, tirar a carne moída da geladeira; a cebola; o alho; e (no caso de Buraco Quente Molhado) o molho de tomate. Sal a gosto. Daí, depois de preparado, é só comer. O buraco de seu estômago vai ser preenchido. O vazio da sua alma vai ficar inundado pelo bom gosto de uma comida simples e nutritiva. Você vai dar pulinhos de alegria. Seu pau vai subir. A vida vai valer a pena, finalmente. Você não vai mais pensar em se matar. Sua família vai ficar contente com você. Seus amigos irão lhe dar flores. Seus vizinhos cantarão ao seu regresso. Sua rotina será perfeita. Suas bolas tremerão de satisfação. O Buraco Quente vai te tirar do buraco.



O Bacon da Quinta

O belo salgado tinha um pedaço de bacon bem no meio. Era um pedaço grande. O bacon estava envolto em presunto e queijo. Todo banhado em um molho caseiro meio apimentado. Isso deixava ele molhado. Foi um prazer comer um negócio desse em pleno ambiente comercial eletrônico de um shopping moderno. Um refúgio de bacon empapado e embrulhado num invólucro de massa divina. Um gosto do paraíso no meio do inferno. Pessoas passando, comprando. Olhava cada vez mais seu precioso bacon macio e vistoso, saboroso e generoso. Parecia agradecer a mordida apaixonada. Um momento parado no tempo. Um momento para lembrar pra sempre. Aquele bacon, naquela quinta-feira. Lembrará e sempre tentará voltar, mas mesmo se encontrar novamente, o bacon não será o mesmo, não terá o mesmo gosto do daquela quinta-feira. Mas todas as quintas terão gosto de bacon.



O Homem que Virou Merda

A mente era assídua na sua tarefa de cagar na vida. A vida corria, rápida ante seus olhos e a mente cagava em tudo. Ficava completamente paralisado sem saber o que dizer. Sentia uma dor monótona e contínua, que lembrava uma estagnação cinza de uma tarde igual em uma cidade igual com cheiro de fumaça. A dor parecia ser um protesto da mente masoquista, o cérebro amassava-se numa agonia infinita. Não podia dizer que era enxaqueca. Sempre que ouvia de alguém a palavra enxaqueca, ficava com raiva da pessoa. Odiava a dor dos outros. Não podia ser pior do que a dor estagnante, incessante e sem graça de sua cabeça. Devia ser egoísta, não tinha certeza. Mas, pelo menos, não ficava se queixando aos outros. Tudo era infernal e ele sabia que nada tinha solução. A ansiedade era extrema de tal forma, que viver parecia impossível.
Foi com esse estado de espírito que o homem foi para a festa. Queria extravasar! Bebeu umas dez latas de cerveja e tomou mais uns cinco drinks de vodca, mas não ficou bêbado. Tinha umas cartas na manga que não o deixavam ficar atordoado, mas estava louco.
Já era lá pelas três da madrugada, quando viu uma mulher e decidiu fazer uma empreitada.
Tava louco, então não se importava com nada que dissesse ou fizesse.
Falou: Você é gostosa, adoraria bater uma punheta pensando em você.
A mulher deu risada e afastou-se (uma puta escrota que tinha uma verruga bem embaixo da narina esquerda). Ele já sabia que esse seria o resultado, por isso nem ligou. O objetivo era causar um espanto inofensivo e quebrar a rotina da noite de uma maneira engraçada. Sempre fazia isso, no entanto, nunca arranjou confusão. Dizia de uma maneira tão gentil e delicada (que nem uma bicha) que, no máximo do choque, a menina (geralmente, menininha mal comida que precisa levar no rabo) daria um risinho surpreso. E nenhum marmanjo (otário, que merece morte lenta e dolorosa por meio da empalação) passando por perto atreveria-se a intervir, já que fazia uma careta insana meio sedenta por sangue (dos outros e dele próprio) se o mal-encarassem. Não queria briga mesmo. Mas se surgisse a confusão, tentaria, ao menos, liberar-se numa fúria suicida (um quilo de dinamite seria ideal). Acabar com tudo na primeira oportunidade.
A vida sempre foi uma merda, continua uma merda e sempre vai ser uma merda. Essa era a sua filosofia. Portanto, não fazia nenhum sentido o sentimento de autopreservação ou qualquer coisa parecida (como o amor ao próximo, por exemplo). Era um trem desgovernado.
O que ele mais queria na vida, seu único objetivo: conseguir uma arma. Era seu sonho. Pegaria o revólver, tacaria na têmpora direita e daria um tiro com a maior felicidade possível, uma felicidade inexistente que almejava encontrar nesse fatídico dia.
Fora isso, não tinha sonhos e não acreditava em nada além do terror de se estar vivo num Universo selvagem, indiferente e ávido por destruição. Onde nada fazia sentido (pra se usar o mais antigo dos clichês) e onde não existia futuro, além daquele imaginado pelo ser pensante, portanto, irreal.
Não conseguiu a arma. Então se jogou da merda de um prédio e virou um monte de merda estatelada no chão, feito uma disenteria humanoide constituída de miúdos, miolos, vísceras. Tudo bem amassadinho. Uma substancia pastosa de cor rosa-avermelhada. Que se foda também! Se o cara quer virar merda, deixe ele.

 

Lanche Alucinado

Pediu um lanche. Ia demorar. O trailer era popular. As pessoas acotovelavam-se na frente da mulher que anotava os pedidos. Anotava em um computador. O estabelecimento foi de um carrinho velho de cachorro-quente para um trailer comprido, moderno e vistoso; com tv, dvd, computador, duas chapas e todo o cardápio pintado na lateral em letras garrafais e lustrosas. A espera era de, no mínimo, 20 minutos. Tinha umas cadeiras de plástico na calçada, nas quais os clientes sentavam e assistiam ao último dvd serta-brega da moda. O ar estava ficando gelado. Era melhor ficar na primeira cadeira, que ficava bem do lado da chapa. Lá estava mais quente e o cheiro do bacon era estarrecedor. Molhava as narinas e dava uma sensação de conforto inexplicável. 10 minutos, já tava na quarta música do show maldito, brilhante e colorido que infestava a tela da pequena tv plana de 17 polegadas que flutuava bem em cima da cabeça da atendente magricela que tinha cara de pão amanhecido e entristecido. A mulher que fritava os lanches era gordinha e jeitosa. Dançava elegantemente, movimentando aqueles bracinhos ágeis; redondos e rosados; suculentos e sensuais; apetitosos e atraentes. Pegava uma tira de bacon e já jogava-a na chapa de uma maneira tão natural que era hipnotizante. Separava fatias intermináveis de queijo com uma rapidez incalculável. Era mestra no ofício. Vez por outra, comia um pedacículo de bacon, num movimento tão veloz que era quase impossível de enxergar a olho nu. Era preciso ficar com o olhar estacado entre a mão hábil e gorducha e os pedacinhos de bacon que ficavam dispostos em um monte disforme no canto da chapa. Ela percebeu que ele olhava-a e deu um risinho hospitaleiro. Ele retribuiu o sorriso e desviou o olhar para o megashow encenado pela dupla sertaneja de roupa fashion e cabelo arrepiado. 20 minutos. Ainda não tava pronto. Havia pedido um x-fomera, que tinha um monte de coisa, inclusive bacon. 25 minutos. Pronto! Deve ter valido a pena esperar. Vamos ver. Era pra viagem. Pegou o embrulho que levaria pra casa. Estava pesado, cheio e levemente umedecido. O cheiro era de êxtase. Não via a hora de chegar em casa pra destruir o sanduíche numa fúria lasciva. Salivava. Enquanto dirigia, não parava de olhar para o pacote no banco do passageiro. Precisou controlar-se para não possuir de imediato o lanche indefeso, imóvel e farto. Poderia causar um acidente. Suas mãos engorduradas não conseguiriam manter a direção ao mesmo tempo em que apertariam freneticamente o pobre hambúrguer estrangulado; seu olhar de besta ensandecida não veria o outro carro, o poste, a pessoa ou o cachorro. Bateria de frente, num frenesi de gozo, maionese e sangue, matando o transeunte/motorista instantaneamente! Seria preso por homicídio doloso embasado na sua aparente embriaguez. Afinal, estaria embriagado, não por álcool, mas pelo suave aroma reconfortante do bacon sendo mordido vorazmente por sua boca espumante e ávida por lanche. Era melhor esperar chegar em casa. Lá, abriria o embrulho; cortaria o lanche em dois; colocaria num prato; ligaria a televisão. Enfim, degustaria o hambúrguer sem nenhum compromisso, sem nenhuma distração a não ser a merda aleatória passando na tv.

 

 

A Melhor das Notícias

O jornalista, de óculos, terno, gravata e pasta na mão, caminhava pela calçada. Um tiro de fuzil atravessou-lhe o crânio. Seu cérebro espalhou-se pelo canteiro de uma lanchonete que, no momento, encontrava-se fechada.
Um repórter, engomado, cabelo na moda, todo fitness, jantava com sua esposa em um restaurante chique, aclamado pelo público de alta renda e frequentado por pessoas conhecidas da mídia. Tomou dois tiros, um na barriga, outro na testa. Caiu de cara no prato caríssimo, criação de um célebre chef televisivo.
No trânsito, dentro de sua Mercedes branca, o homem nervoso suava um pouco, devido à lentidão do tráfego, que agora estava totalmente parado. Era um conhecido apresentador de um programa policial sensacionalista que ocupava as tardes de um infame canal de tv bem popular. Levou um tiro de escopeta, bem à queima-roupa, estilhaçando o vidro lateral em centenas de pedacinhos e destruindo sua cabeça, que explodiu com o impacto do projétil, lambuzando praticamente todo o interior do veículo com sua massa disforme.
Começou assim, foram sendo assassinados, um por um, com intervalos cada vez mais curtos, todos os profissionais de imprensa do país. Num dia era o redator de um jornal desconhecido, noutro era a âncora da tv, reconhecida por todos. Foi-se extinguindo a espécie. Todo mundo foi acostumando. Virou rotina. Aos poucos, a tv foi parando de dar notícias, os jornais cessaram suas circulações, os portais internéticos desapareceram completamente. Uma paz reinou em território nacional.



Ovo Frito

O ovo frito não estava aguado. O ovo frito estava muito bem frito. Caipira. Vermelho. Pequeno. Redondo. Gema mole, do jeito que eu gosto. Comi três. Com arroz e feijão. Só colocar o ovo em cima do montinho feito pela união dos dois ingredientes mais nacionais; furar a gema; e o caldo quente vermelho-alaranjado e delicioso escorre pelo prato e mistura-se ao conteúdo unificado, unido e uniformizado pela tradição e cultura. O gosto é foda. Inigualável. No frio é perfeito. Senta a bunda na cadeira. Coloca os cotovelos na mesa. Absorve o ar quente proveniente da refeição fumegante. Baba. Pega o garfo e faca, ou mesmo a colher. Enfia nessa mistura espetacular e leva à boca. Mastiga e saboreia. Imagina, imagina nada. Não há tempo para imaginação. É só sentidos. Visão. Olfato. Paladar. As cores estão lá, vivas. Não é preciso criar uma imagem poética. A poesia está no prato.



Cachorro-Quente

Duas salsichas excessivamente lambuzadas pelo mix de ketchup, mostarda e maionese que formava uma aglutinação perfeitamente rosada. O pão era comprido, em formato de submarino, charutão ou zepelim. Era macio. Estava fresco. Despejaram umas batatas palha por cima da encomenda. Tacaram purê também, pra dar o gostinho de feito-em-casa. Só não puseram molho de tomate, pois já tinha o mix-rosê que dava pra encher o cu de um cabrito. Tava pronto!
Arnaldinho foi, feliz, pegar a sua encomenda. A atendente embrulhou o cachorrão e o colocou numa bonita sacola de plástico. Foi entregue ao cliente assíduo e carismático.
Na volta pra casa, Arnaldinho percebeu que alguma coisa não estava certa com seu lanchão. Alguma coisa atrapalhava a normalidade de um dia banal que acabaria em janta, bronha e sono. O pacote dava pequenas tremedinhas. O rapaz achou estranho. Caminhava apertando levemente o pacote em sua mão esquerda e sentia os tremorinhos que não cessavam de jeito nenhum. A sensação era a de se estar apertando uma barriga vermenta, em que inúmeras lombrigas fominosas estivessem causando um furdúncio esculhambado por uma dança pecaminosa.
Abriu o pacote. Não poderia ficar mais assustado ante a visão de terror que teve em seguida: o imenso cachorro-quente havia ganhado vida e sacudia-se em seus dedos. Uma horrenda transformação acontecera! O pão tinha um aspecto de pele de porco, com pelos e algumas escamas que soltavam-se ao chacoalhar. Na abertura horizontal, onde ficava o antigo recheio, uma espécie de dentição havia se formado. Eram uns poucos dentinhos, separados por alguns centímetros, que assemelhavam-se a grãos de milho gosmentos. O mix tinha virado um creme sanguinolento meio coagulado, plasmático. O purê era algo como disenteria. As batatas palha agora eram infinitos verminhos amarelados que arrastavam-se freneticamente de um lado para o outro. As duas salsichas metamorfosearam-se em dois longos pênis humanos, veiudos e vermelhos que saltitavam numa fúria enlouquecida. Eles eram dois corpos com vida própria. Não eram membros de um organismo maior, eram pênis com identidades próprias. Consistiam em cabeças penianas nas extremidades superiores e as extremidades inferiores acabavam num conjunto de perninhas que agitavam-se epileticamente. Não havia saco. Os dentinhos mordiscavam debilmente os dois caralhos, provocando ondas de prazer nas falsas salsichas. Tremiam espasmodicamente e saía mais molho rosê de suas cabeças ensandecidas.
Pálido e pasmo, Arnaldinho soltou o cachorro-quente mutante, que caiu na calçada causando um estrondo e acordando um mendigo que dormia num banco ali perto. O rapaz saiu correndo. O mendigo aproveitou o ocorrido para apropriar-se do lanche abandonado. Nem ligou para o fato de o cachorro-quente ter vida, feder merda, ser meio esquisito, ter dois caralhos como recheio, dentes e uma infinidade de vermes. Comeu em três mordidas.

O Hambúrguer Dominado

O hambúrguer estava dominado. Dominado pelo queijo rançoso e fétido. Dominado pelo ketchup de má qualidade/índole. Dominado pela mostarda amarela em demasia, parecendo gema de ovo engarrafada. Dominado pelo pão esfarelado que se desintegra ao primeiro contato humano. Dominado pelo presunto duro, seco, com casca encravada. Dominado pelo tomate inusitado, eterno e irreconhecível. Dominado pelo alface verde-escuro, gorduroso e parecendo mais um perfex estragado. Dominado pela maionese com gosto de imitação. Dominado pelo cream-cheese/requeijão cremoso/catupiry fajuto com gosto de leite com maisena. Dominado pelo milho enlatado, enfurnado, desalmado, espalhado. Dominado pelo bacon recreativo, plástico, insosso, desumano. Dominado pelo ovo-borracha, parece de brinquedo, mas não é.

 

Buceta de Frango com Bacon

Argumenaldo estava assistindo a um vídeo pornô na internet. Ficou intrigado ao notar que a vagina rosada da protagonista assemelhava-se à pele de frango cru. Meditou sobre o assunto durante horas. Por fim, decidiu ver outro vídeo pornô no mesmo site de anteriormente. Desta vez notou que a vagina de outra atriz, esta menos rosada, era mais aberta e tinha uma fina fatia de carne dependurada, pendendo sob a entrada do tão aclamado órgão, balançando a cada movimento de sua dona. Não pôde deixar de comparar tal excesso labial com uma imagem que sempre brotava em sua mente: a de um bacon no ar dançando ao vento e espalhando sua fragrância por todo o ambiente.
Ficou obcecado pelo assunto. Com uma mania que logo virou tara. Sonhava com a vagina rosada de pele de frango misturada a outra que pertencia ao mundo do toucinho defumado. As duas aglutinavam-se, formando uma só imagem. No fim, a coisa, que era duas, virou uma. Dias e mais dias se passaram, não conseguia tirar a vagina de frango com bacon da cabeça.
Não dá mais!, disse consigo mesmo.
Foi ao supermercado. Açougue. Pediu um frango inteiro. Pegou um naco de bacon. Foi pra casa.
Na cozinha, preparava, pelado, sua tão esperada refeição. Era domingo. Ninguém iria aparecer. Poderia fazer o que quisesse.
Tirou o frango da embalagem. Era um frango de bom tamanho, daqueles que as donas de casa assam no almoço dominical. Reparou no buraco central, entre as duas coxas. Não havia miúdos, logicamente. O caminho estava livre e, podia-se dizer, parecia macio e confortável.
Ok, agora, como unir o bacon ao frango? Cortou uma estreita tira de bacon, mais ou menos do mesmo comprimento e espessura da tira labial original de sua musa virtual.
Precisava grudar no orifício do cadáver galináceo. Lembrou-se que tinha uma super bonder na geladeira. Meteu a cola e afixou a fina tirinha. Pronto! Agora era só esperar a cola secar e começar.
Enfiou seu rançoso membro no gélido buraco morto. A parte de baixo de seu pênis roçava no bacon, formando, aos poucos, uma fina camada de gordura que deixou seu saco lambuzado ao fim da ação. Sua glande deparou-se com duras e pontudas saliências que logo percebeu tratarem-se das costelas da ave. Ia e vinha no ato sexual. Seu órgão penetrava o frango com uma facilidade ímpar. Tudo foi ficando muito pegajoso. A gordura do bacon misturava-se a uma esquisita geleia que era resultante da violenta fricção na carne do pobre galináceo. No meio do perverso ato, Argumenaldo refletiu: “Provavelmente devo estar cometendo uma terrível atrocidade. O fato de ser um animal me torna um zoófilo; por estar morto, já sou um necrófilo; devido à tenra idade do frango me torno pedófilo; e não sei o verdadeiro sexo, se era frango ou franga, isso faz de mim um possível homossexual. Agora, foda-se!” Aumentou a velocidade e força das estocadas, o corpete do frango começou a partir-se e, nesse ínterim, em meio à carne já disforme e destroçada, gozou.
Ao término de tão primoroso feito, Argumenaldo desfez-se da carcaça dispondo-a no fétido invólucro destinado ao lixo doméstico.
Depois, foi assistir ao Domingo Legal.

 

 

O Déspota Budista

O déspota era um homem muito feliz. Fazia tudo despoticamente e alegremente. Adorava promover uma sangria coletiva ou uma orgia mutilante.
Acordava cedo todo dia, já cheio de ideias na cachola. “Hum, o que será hoje, um desmembramento etílico ou um estupro no melaço?” Ficava pensando por alguns minutos e decidia qual seria a maldade do dia, que definiria a vida e a morte de seus súditos.
Tinha centenas de cachorros, daqueles pretos, esguios e com uns dentões brancos que fariam inveja a qualquer dentista que por acaso estivesse passando na hora da janta dos bichos “Esses cães têm uns caninos de matar!”
Tinha alguns gatos também. Gostava deles, mas às vezes colocava algum pra cozinhar (vivo) só pra passar o tempo. Fazia tapetinhos de banheiro com a pele dos gatos mais caros e lustrosos.
Adorava dissecar cadáveres de macaquinhos albinos que moravam no quintal de seu palácio. De vez em quando cometia alguns atos necrofílicos no meio de uma necropsia que estivesse muito tediosa para o seu excêntrico gosto.
Nos dias de festa mandava chamar 70 carrascos que ajudavam-no a massacrar centenas de homens, mulheres e crianças.
O tédio nunca o atingia fortemente. Sempre tinha um elixir para a monotonia que consistia em litros de sangue inocente despejados das formas mais cruéis e criativas.
Gostava de ser um tirano sanguinário. Era o seu destino, sua senda. Nasceu em berço de ouro (literalmente). Cresceu aprendendo a abafar revoltas, imolar inimigos, torturar serviçais, seviciar criadas e aniquilar qualquer forma de vida que estivesse abaixo de seu poder, ou seja, todas.
Um dia, já tendo cometido todos os atos horríficos possíveis ao ser humano, virou budista. Só faltava isso mesmo, pensou ele, vou virar budista, assim continuarei plenamente feliz, independentemente das minhas atrocidades!
Colocou um retrato do Dalai Lama em seu quarto. Todos os dias trazia uma vítima diferente e a matava de forma horripilante em frente ao quadro do Buda reencarnado sorridente. Não sabia se era impressão sua, mas parecia que o sorriso do santo homem aumentava a cada dia.

 

Lombão

Lombão. Baita lombão! O lombão de porco estava na mesa e fazia o bêbado salivar como uma leitoa no cio.
Ele via aquele lombão brilhante, cheio de um molho gosmeticamente convidativo. Já sentia o gosto só de imaginar a tenra carne derretendo-se em sua boca. Derretendo-se sim, isso mesmo, já que não era um lombo seco, clássico em sua mediocridade. Era um lombo feito magistralmente por uma véia que sabia cozinhar como ninguém. Uma véia que fazia pratos de sonho. As crianças da rua geralmente corriam atrás da pequena senhora, gritando pedidos culinários e cuspindo elogios às coxinhas profanamente gostosas que a véia fazia nas festinhas de igreja que animavam a pequenina cidade interiorana nos feriados, domingos santos ou casamentos gratinados.
O bêbado já começava a sentir pontadas de fome em suas entranhas, sacudia-se como um sabujão infartado. O lombão, baita lombão, já era lendário. Seu Jeremias da tendinha dos come-comes e saltolhos sempre falava nesse afamado lombão. O bêbado ainda não havia provado o tal prato perfeito que nem Deus deixaria de comer por nada na Terra assim como no Céu.
Mas estava lá, na mesa. Tão perto que as narinas abriam que nem olho de cachorro morto esbugalhado na estrada. Lá, lá. Tava numa travessa prateamente enfeitada com umas batatas derretentes fazendo a volta no lombo. Umas bordas que pareciam coroar a carne com uma auréola dourada, molhosa, fumegante e extasiante. As batatas pareciam ter vida e conversar umas com as outras “Olha que lombão, meu Deus, como tenho orgulho de estar aqui!”
E parecia sozinho lá no meio da mesa, como se fosse único prato em tão caprichado manjar dos deuses e esfomeados, ignorando-se que lá tinha também um frango excluído, ínfimo e quase inodoro; um arroz mediano, de praxe, bem populesco; uma salada escondida, de um verde incógnito; um feijão nervoso pelo fato de nem terem notado que ele tinha pedacinhos de linguiça e courinho que em outras épocas daria o que falar.
Lá estava lá, o lombão!
Caramba, quando ia ser declarada a comilança?! Dali a minutos, mas parecia eternidade infernal, ou no mínimo, uma espera rotineira num purgatório purguento. O nervoso aumentava, precisava dum traguinho, só um. Rápido.
Foi-lá, do outro lado do barracão, na parte difamada, no lado esquerdo. Pegou uma dosinha de cachaça. Virou. Hum, beleza, agora sim. Vamos ao lombão que deve tá servindo! Foi, quando chegou lá, na mesa, o lombão se fora.

 

 

Smartphone of Death

Crentinaldo adorava o seu smartphone. Vivia o tempo todo olhando para a telinha translúcida e brilhante. Não levantava o pescoço. Já tinha criado até uma dobrinha especial bem embaixo do queixo, a chamada “papada instagram”.
Não desgrudava mesmo. Tudo que era notícia, atualização de perfil social, vídeo do youtube. Nada disso escapava a Crentinaldo. A vida pelo smartphone era bela e azulzinha. Curtia, compartilhava e comentava a esmo.
No trabalho, na faculdade, na igreja, na lanchonete, na boate… lá estava Crentinaldo e seu inseparável smartphone colado na palma de sua mão esquerda.
Acordava e já pegava o tal aparelhinho que repousava todas as noites no criado-mudo ao lado de sua cama. Tomava o café da manhã antenado com o que acontecia no mundo virtual. Assistia tv em companhia de seu fiel smartinho. Tuitava respostas imediatas à polêmica da semana. Era adepto de uma causa por dia. Gostava de ajudar. Mesmo se fosse pela internet, sem nem conhecer o tema, assunto, mobilização… só na teoria. Crentinaldo era uma cidadão moderno, globalizado. Sentia-se muito bem ao perceber que não estava sozinho no mundo, era amparado por milhares ou até milhões de pessoas que amavam-se mutuamente em prol de uma humanidade mais unida e conectada.
Tudo era perfeito na tela azul. Todo mundo era bom. Quanta gente boa! Que mundo bonito e digno!
Na rua, andava sem olhar para a frente. Cabeça levemente inclinada. Smartphone tinindo. Uma curtidinha e … o caminhão passou por cima. Não deu tempo de frear. Entre as rodas, Crentinaldo encontrava-se em pedaços. Seu smartphone, sem um arranhão.

 

 

PF

O prato preferido de Argumenaldo era arroz, feijão, tirinhas de bacon fritas, linguiça de pernil assada, ovo frito mole, macarrão alho e óleo, brócolis, carne moída com batatas, medalhões de frango e quiabo. Chegou em um restaurante e fez o pedido. O garçom olhou no cardápio e disse que não poderia juntar tudo isso num prato só. Argumenaldo ficou vermelho de raiva e berrou que queria o prato imediatamente. O garçom repetiu a mesma ladainha. Argumenaldo, então, pegou o garfo e enterrou em sua própria mão esquerda. O garçom ficou pasmo. Argumenaldo olhou para todas as pessoas das mesas em volta e proferiu estas palavras: Aquele que não me serve o meu prato favorito, deixando de lado as regras da boa cortesia gastronômica, deve derreter em cinco segundos.

O garçom olhou em volta sem entender nada e começou a lentamente derreter.

Argumenaldo saiu sem pagar a conta (de uma coca de garrafinha de vidro de 290 ml).

 

Argumenaldo

Argumenaldo sempre foi um cara noctívago. Gostava de sair à noite todos os dias. Andava na rua. Olhava os transeuntes. Voltava para casa. Fritava um ovo. Assistia à tv. Fumava um charro. Discutia com suas unhas. Penteava os seus pentelhos. Fritava outro ovo. Batia uma bronha. Olhava pela janela. Colocava as nádegas nuas no vidro da janela (que ficava encrostada de bosta). Chamava o elevador (ele morava em um prédio). Peidava no elevador e saía correndo. Voltava para o apartamento. Contava as moscas que ficavam em volta dos restos de pão doce de dois dias atrás. Esfregava o saco no chão da sala (que era de taco). Mordia seus joelhos. Cantava na privada. Fritava mais um ovo. Jogava bistecas cruas na parede (dizia que ficavam mais macias para fritar no dia seguinte). Passava a glande na tela da tv se o programa estivesse interessante. Tomava um café com cachaça. Lia o jornal e ficava com dor de barriga. Cagava na janela (desta vez aberta). A merda escorria aos montes pela parede do lado de fora de seu apartamento. Não se limpava. Ficava com o cu sujo. Comia um salgado comprado na manhã anterior. Não esquentava. Comia gelado. Ria, dava gargalhadas. Escovava os dentes no elevador. Cuspia a espuma aguada e saía correndo. Tocava a campainha dos vizinhos e tocava uma bronha ao mesmo tempo. Esperava alguém atender. Ninguém atendia. Já conheciam a peça e suas manias (uma vez, um velho abriu a porta e teve um enfarte diante de tal cena). Uma velha ficava olhando pelo olho mágico, enquanto Argumenaldo se estremecia suadamente numa bronha espasmódica. Ela babava. Ele babava.

 

Dia Normal

As calçadas transbordavam de gente. Estava frio, mas aquela multidão enfiada em roupas quentes dava a sensação de abafamento e opressão. Argumenaldo começou a ficar tenso. Apesar do vento gélido, sua testa suava em profusão. As rugas de sua fronte formavam pequenas poças horizontais suspensas que vazavam em gotas quentes e viscosas. Suas extensas sobrancelhas estavam encharcadas. Pelo menos, o suor ainda não tinha chegado aos seus olhos. Por outro lado, seu nariz era como um tobogã molhado e escorregadio. Da ponta de seu nariz caía uma fina corrente de água salgada. Gotículas chuviscavam em seus lábios, à medida em que ele chacoalhava a cabeça para afastar o suadouro, salgando sua boca e lhe dando um aspecto de náufrago rejeitado. Estava assim, a chacoalhar o coco, quando um velhinho aproximou-se dele e perguntou-lhe se, por um acaso, ele não tinha uma moeda. Argumenaldo notou que o velho estava com as roupas puídas e exalava um leve aroma com teor de cachaça. Deu-lhe uma moeda de 50 centavos. O homem agradeceu-o. Virou-lhe as costas e partiu. Argumenaldo não pôde deixar de reparar na nuca do pobre homem. Tinha um corte que ia da base até o topo da parte de trás da cabeça. O velho era careca. O corte estava fresco e devia ter sido costurado no dia anterior. Uns 10 pontos, pelo menos. “Acho que ele deve ter caído e batido a nuca no concreto. Provavelmente.” Ficou pensando nisso até que, distraído, colidiu com uma senhora que caminhava apressadamente. A mulher proferiu alguns impropérios e meteu o dedo, duro, no meio das costelas de Argumenaldo, que curvou-se numa expressão de dor e incredulidade. Ela foi embora. Continuou o seu caminho. Ele ficou ajoelhado no chão, chorando e com raiva do Universo. Aquilo não podia ficar assim. Teria que fazer alguma coisa. Decidiu ir ao cinema. Entrou no Shopping. Subiu a escada rolante. Comprou um ingresso para a próxima sessão. Era uma comédia americana. Ficou com dor de barriga. Cagou na calça. Não ligou. Ficou alguns minutos na fila; as pessoas olhavam-no estranhamente. Não se importou. Quando o filme começou, foi para a frente da tela e abaixou as calças. Tirou-as e jogou num casal que estava na primeira fileira. A mulher gritou, o cara estagnou. Também tirou a cueca, cheia de merda. Ergueu-a acima da cabeça; balançou-a e ficou girando-a com sua mão direita, como uma hélice de helicóptero, frenética e imprevisível. Toletes de merda voaram. Alguns atingiram a tela. Outros, as pessoas. Um homem berrou e engoliu bosta. Tudo durou muito pouco. Uns 30 segundos, mais ou menos. Então, Argumenaldo saiu correndo pela saída de emergência. Praticamente pelado. Ninguém o deteu. Conseguiu chegar em casa, correndo pelas beiradas. O fim de um dia chato.

 

Dia de Compra

A atitude da balconista fez Argumenaldo perder a cabeça.

Ele estava olhando um produto na prateleira de uma loja.

Era um vaso de plástico. Feito para colocar flores.

Argumenaldo olhou o vaso por trinta e sete minutos.

A balconista, depois de todo esse tempo, disse: Ou compra ou não compra!

Argumenaldo teve um choque ao ouvir tal frase ao pé do seu ouvido. Seu corpo teve um tremelique. Soltou um peido. Freou levemente a cueca.

A balconista, sentada num banquinho almofadado, olhou para sua cara em convulsão.

Argumenaldo torcia o rosto em uma careta sanguinária. Babava um pouquinho e soltava ganidinhos intimidadores.

Ela foi logo ficando assustada: Está tudo bem com o senhor?

Argumenaldo deu três pulos bem altos. Apertou o saco com a mão esquerda e coçou a bunda bem forte com a mão direita, quase enterrando o dedo indicador no cu.

A mulher ficou ainda mais assustada. Perguntou: O senhor está tendo um ataque epilético?

Argumenaldo respondeu: Não! Estou ficando de pau duro e vou vomitar aqui no balcão.

A balconista tremeu.

Ao invés de vomitar no balcão, Argumenaldo saiu pulando da loja. Parou um táxi, entrou, tirou o pau pra fora da calça e começou a bater punheta.

O taxista ficou estupefato e, num acesso de cólera, pegou um frasco de spray de pimenta e despejou metade do seu conteúdo bem na cabeça do pau de Argumenaldo.

Argumenaldo começou a berrar e saltou do táxi ainda com o pau pra fora da calça. Balançando e ardendo como o inferno, seu pau estava roxo e lacrimoso.

Argumenaldo continuou pulando na calçada.

Um guarda o viu e disse: É bom jogar água nisso.

Argumenaldo respondeu: Anrã!

O guarda conduziu Argumenaldo (ainda com o pau pra fora da calça) para uma pracinha.

Abriu uma torneira perto do canteiro.

Argumenaldo deitou no chão e ficou com o pau embaixo da torneira.

O guarda falou: Satisfeito?

Argumenaldo, com um sorriso de alívio pairando em seu rosto, disse: Muito. Viver é uma delícia!

O guarda se agachou, beijou a testa de Argumenaldo, levantou-se e foi embora, feliz.

Argumenaldo continuou refestelado no chão. Chorando de prazer, com a água da torneira derramando-se em seu pau como uma pequena cachoeira. Gozou automaticamente. Riu. Guardou o pau pra dentro da calça. Levantou-se. Foi embora caminhando alegre.

 

Mortal Kombat

Tava jogando Double Dragon, do Nintendinho. Adorava o Double Dragon, o jogo era muito bom, principalmente o primeiro, mas o filme era uma merda. Uma merda gigantesca, tão grande que dava pra encher o rio Tietê. Não entendia como poderiam ter feito uma cagada tão imensa, baseada em um jogo massa pra caralho. Mas era mais ou menos assim que as coisas eram. Os jogos eram bons; os filmes, ruins. Não se lembrava de nenhum filme bom baseado em jogos de videogame, nenhum! Era incrível. Devia ser uma maldição. Lembrou de Mortal Kombat, merda; Super Mario, merda; Street Fighter, merda! Todas as adaptações cinematográficas eram lixos astronômicos! Não entendia o porquê. Simplesmente não entendia. Por que Deus havia de ser cruel assim, destruindo o sonho de uma geração de crianças imbecis, destinadas a serem zé-bucetas para o resto de suas intermináveis vidas? Por quê? O filme do Mortal Kombat não tinha nem sangue! O jogo era uma sanguera total! Pra que enganar o sujeito desse jeito? Deixou uma carta, uma carta sem destinatário, na caixa de correio obsoleta:
Me responda, Universo maldito! Quando eu morrer eu vou perguntar pra Deus o porquê de todas essas coisas e se ele não souber responder ou se ele zoar com a minha cara, eu não sei o que vou fazer, vou dar um safanão nele, tirar uma adaga da minha meia e enfiar no pescoço dele, ver o sangue jorrar! O sangue que eu não vi no filme do Mortal Kombat.
Ass: Zé Buceta.

 

Ebola na Saia

Rezava a Deus para não ser verdade. Sua mente teimava e constantemente o lembrava da ameaça. Não poderia estar com ebola. O frenesi da mídia havia assustado tanto Evangelino que ele agora acreditava que contraíra ebola de alguma maneira indecifrável.
Por quê? Por que Senhor Jesus?! Repetia ele noite e dia. Fazia tudo direitinho. Ia no culto. Rezava. Não bebia. Não consumia substâncias ilegais. Não tinha pensamentos impuros… Peraí, será que Deus estava punindo-o por causa daquele dia?! Não durou nem um minuto! Domingo, depois da celebração, estava ele à toa na saída na igreja. A uns passos dele, estava Jesuína, bela moça. Evangelino olhou por alguns segundos para suas nádegas protuberantes no saiote apertado. Eram redondas e voluptuosas. Emanavam uma essência divina, como um presente da Criação feito para a procriação. Sentiu um leve comichão nas calças, que logo virou um endurecimento concreto, levando um certo rubor às faces de Evangelino. Saiu correndo, sem dar explicações a ninguém. O evento foi todo esse e ponto final.
Agora, o Senhor iria puni-lo pela sua indiscrição e falta de vergonha na calça. Com certeza teria mandado um enviado de Satã para entregar-lhe o invólucro do mal que iria arruinar-lhe a vida terrena e a eterna num piscar de olhos.
Desconfiava que foi naquele dia, na lanchonete do Janjão. Pediu um x alguma coisa. Veio embrulhado no papelão típico de franquia, mas que não era franquia, e sim imitação de franquia. O lanche tava com um gosto esquisito. Nem frio, nem quente. Meio estranho. Na hora em que mastigava, lá pela metade do sanduíche, viu o fritadeiro olhá-lo com um desdém ímpar. Quase pôde enxergar uma risadinha de escárnio no canto de sua boca. Será que era impressão? Foi dormir com uma pulga que não deixava de pular e dava até cambalhotas atrás de sua orelha.
No dia seguinte, viu uma notícia na tv. Era sobre a epidemia de ebola que estava assolando a África e amedrontando o Ocidente temente a Deus. Logo lembrou que o fritador de hambúrguer era um imigrante recém-chegado de Serra Leoa. Diziam que ele mexia com feitiçaria também. Não podia ser!
Começou a sentir umas tonturas, umas dores cranianas. Cheio de febre, suava como um pastor tirador de Diabo. O corpo tremia embaixo da coberta. Assistia à tv que não parava de jorrar notícias sobre o ebola e sobre como a doença estava infiltrando-se no continente americano. Logo chegaria no Brasil, se já não tivesse chegado.
Evangelino, apavorado, não conseguia nem rezar mais. Ficou uma semana de cama. Foi ao médico, que lhe disse não passar de uma gripe comum. Sei, pensou Evangelino, gripe comum… era ebola! Sim, era ebola e Cristo me salvou! Nunca mais terei pensamentos sujos. Nunca mais vou olhar pras costas da Jesuína! Isso foi um aviso de Jesus!
Voltou a dormir tranquilo. Ia ao culto regularmente. Tudo tava bem sossegado. Só parou de ir na lanchonete do Janjão, o lanche nem era bom mesmo.
Já tinha passado um mês do transtorno. Na saída do culto, viu Jesuína. Ela caminhava um pouco a sua frente. Balançava, rebolava comportadamente. O saiote capeta! De novo um comichão… Olha o ebola!

 

Sopa Fria

Mexia a sopa no prato com uma intensidade angustiante. Ainda não estava morna. Tava muito quente. Gostava quando a sopa esfriava e o macarrão crescia. Não era tão fã de caldo, preferia a sopa mais seca. Peito de frango era o ingrediente essencial na confecção da sopa ou canja.
Pelas beiradinhas ia provando as cálidas colheradas. Ainda tava quentíssima a sopa de continhas. Decidiu colocar o prato em cima da geladeira. Foi assistir televisão. Tava passando Vale a Pena Ver de Novo. Bateu aquele tédio abafado da tarde ensolarada enfurnada na casa cotidiana, comum, familiar. Esqueceu a sopa. Já tinha passado todo o capítulo igual, insosso e repetitivo da novela de dez anos atrás. E agora, qual será o estado do prato? Uma hora em cima da geladeira deve ter tido um resultado meio avassalador em relação à quentura do caldo e ao tamanho do macarrão. Foi ver. Fumaça já não havia. Nem mesmo névoa de calor. O pratão fundo, ao longe parecia normal. Chegou perto, a ponto de sentir o leve cheiro reconhecidamente confortável do frango inconfundível, como uma marca registrada. Peito de frango cozido sempre cheirava igual, uma das maravilhas da ciência culinária contemporânea.
Mais perto, quase tocando. Cresceu um pouquinho. Mas o caldo ainda não tava naquela condição pastosa que tando adorava. A sopa, no entanto, já encontrava-se morna. Iria esperar mais um pouco. Talvez mais uma hora. Então ficaria perfeita. E comeria não apenas o prato, mas também o resto que estava na panela de pressão, esperando pra ser devorado com uma avidez de fim de tarde.

 

Putas e Filhos da Puta

Cada dia se pensa mais. Cada dia vale menos a pena. Nada vale nada. É tudo oco, sem sentido algum (inclusive este texto de merda). O único objetivo de um ser humano sensato é a procura pelo caminho mais fácil de sua própria extinção. O sofrimento é inútil.
Depois de refletir muito, o ser humano chegou à conclusão de que só existem dois tipos de pessoas: as putas e os filhos da puta. As mulheres: putas. Os homens: filhos da puta. É um ciclo interminável. Ele próprio se diz um filho da puta, já que só existem duas categorias. Todos simplificam o mundo, portanto ele acha-se no direito de também fazê-lo. Tudo fica mais fácil. Putas e filhos da puta. Extingue-se a compaixão por qualquer ser (inclusive ele mesmo). Putas e filhos da puta. Uma bela filosofia. Simples, direta e… verdadeira. Afinal, a verdade é só uma ideia, uma palavra. Putas e filhos da puta. Somos todos putas e filhos da puta.
É ótimo, é cômodo. Taí, o ser humano convence-se. Taí, convicção, esta é a palavra. Não precisa estar certo (outra abstração), não precisa de racionalismo (outra forma de religião), só é necessária a convicção.
Celebre-se a morte de um filho da puta. Celebre-se o nascimento de um filho da puta.
Celebre-se a morte de uma puta. Celebre-se o nascimento de uma puta.
Tudo vira um. Tudo um só. Não é o princípio do budismo? Um só. A puta nasce, gera, morre e reencarna. O filho da puta nasce, gera, morre e reencarna.
Putas e filhos da puta. Putas e filhos das putas. Filhos de putas e putas. Filhos da puta e putas. Filhos das putas e putas. A puta e o filho da puta.

 

Vida Rebobinada

 

Tá um sol de rachar, pensa Jambrósio ao olhar pela janela da biblioteca. Vou sair pra almoçar.
Entra no carro, que ferve e solta fumaça ao abrir a porta. Liga. Sai com o seu veículo popular velho e cheio de problemas, como ele mesmo.
O trânsito é infernal. Cada pessoa dentro de seu mundinho particular. Alguns roendo unha. Outros suando com a mão no volante. Tem até uns que vasculham desesperadamente seus celulares à procura de algum significado pra suas vidas de merda.
O sinal abre e dispara a sinfonia ensurdecedora. O ar, fumacento. O asfalto treme aos olhos. Puta calor!
Jambrósio estaciona numa vaga do supermercado que tem um restaurantezinho no andar de cima. Pega a fila pro quilo. Faz seu prato e vai sentar sozinho numa mesinha de canto.
Olha para a quantidade de comida que não justifica o preço caro. O gosto também não.
Acabado o almoço, ele enfrenta novamente a batalha quente e barulhenta do tráfego.
Chega novamente na biblioteca, da qual é funcionário.
Repete essa rotina todos os dias úteis da semana.
Sua vida torna-se assim muito útil, muito significante.
Quase pula de alegria ao refletir sobre sua condição de ser humano, tão importante para o Universo!
Nossa, que legal! Adora chegar em casa e ver as notícias do dia, comentadas por especialistas de todos os tipos.
Vê algum filme repetido pela centésima vez (faz diferença?); os filmes parecem meio iguais.
Assiste a um jogo. Entediante.
Mas ele está feliz, porque poderá repetir essa rotina a vida inteira! Quer coisa melhor?!
Vai dormir com um sorriso na boca.
No meio da noite, sonha com vermes e ratos.
Acorda de manhã. Um banho levanta qualquer um!
Vai pro trabalho. Toma um café.
Que vida plena e digna!
Não quero morrer nunca!
Só quero repetir, repetir, repetir e repetir! É tão bom! Rebobinar é viver! Se, ao menos, eu tivesse uma pílula daquelas de filme de espião…

 

 

Morte Repetitiva

Eu já vi tanta gente morrer. Digo, em vídeo, ou gente morta em fotos. Não é que eu goste. Veja bem, tenho um problema que nunca encontrei em outra pessoa que conheço. Sofro de uma espécie de comportamento obsessivo, mas a minha obsessão incontrolável é a de ver pessoas morrendo ou já mortas. Deve ser uma ramificação, sub-gênero, derivação ou evolução do transtorno obsessivo-compulsivo, resultante da era da internet, em que é tão fácil ver alguém morrer quanto é fácil ver alguém meter. Se eu gostasse pelo menos… O problema é que sou muito sensível e guardo as coisas na cabeça. Ao ver a foto de um defunto acidentado, preciso revê-la repetidamente, até meu cérebro ficar em paz, senão ele para, trava; é um tipo de máquina, cujas engrenagens funcionam à base de um combustível composto da visão do sangue. Se é o vídeo de alguém morrendo, também preciso ver e rever várias vezes, com medo que aconteça comigo, com alguém que conheço ou por uma estranha solidariedade à própria pessoa desafortunada, como uma dor auto imposta, é preciso ver os sofrimentos da humanidade para compadecer-se com eles. Teve uma vez em que vi uma cabeça explodindo umas duzentas vezes, aliviando assim a minha ansiedade e evitando que minha própria cabeça explodisse! De forma que minha vida virou um show de horrores. Sou um cara normal. Trabalho, tenho amigos, vou ao barzinho, mas sempre eu estou com alguma imagem sanguinolenta na cabeça. Às vezes, pra tirar um pensamento intrusivo de morte, tenho que ver alguma imagem de morte. Tudo está ruindo dentro da minha mente. Meu cérebro borbulha em desconforto. Quem será que irá aliviar-se quando for ver a foto dos meus miolos espalhados pelo chão depois de um tiro; meu pescoço dilacerado; meu corpo destroçado por um acidente; esmigalhado na calçada; carbonizado por um raio; inchado por afogamento; desmembrado por um elevador em mau estado. É, não dá pra saber, mas enquanto isso eu tenho que me precaver. Hoje, antes de dormir, preciso ver repetidamente, pelo menos, umas três fotos de mortes ou uns dois vídeos de fatalidades; daí, em paz, sonho com os anjos.

 

 

 

Pau no Cu de Deus

 

Penso em Deus todos os dias. Deus pra lá, Deus pra cá. O que faria Deus em tal situação? Qual seria a opinião de Deus sobre tal assunto? Qual é a cara de Deus? Deus pode assumir todas as formas? Um cabrito; um leitão; um gafanhoto; um pedaço de merda; uma gostosa besuntada, de quatro? Fiquei pensando nesta última. Seria ético, moral, imoral, certo, errado ou politicamente incorreto eu ficar de pau duro pensando em Deus? Eu, um crente! Se Deus fosse essa gostosa besuntada esperando pra levar uma pintada, será que seria justa, pelo menos, uma punheta? Comer Deus de quatro? Um boquete de Deus? Enfiar o pau no cu de Deus? Gozar na cara de Deus? Será que se eu ao menos imaginasse tal façanha, será que meu pinto iria cair? Ou explodir? Ou dividir-se ao meio em duas fatias, numa rasgada só, e elas saíssem voando como duas asas e colassem nas minhas bochechas, debochando assim do meu ato de insubordinação divina? Provavelmente não. Decidi, então, bater uma bronha pensando em Deus. Já que não seria possível comer Deus de verdade. Imaginei Deus com um baita bucetão! Bucetão róseo, celestial! Deus de quatro, com uma auréola bem em cima da bunda. Meter na buceta, depois no cu santíssimo e gozar na auréola, porra caindo pelas beiradas cintilantes. O milagre da ejaculação. Tetas naturalíssimas balançando no gingado da meteção embalada pelo ritmo da oração que o Senhor nos ensinou. Nossa Senhora assistindo tudo, rebolando cheia de graça, com o véu por cima do corpo nu e enfiando o dedo na santa buceta melada de excitamento etéreo. Deus goza como as gozadoras jorradeiras e geme à la porn star. Foi uma punheta boa. Meu pinto não caiu, não explodiu e não rasgou; continuou sendo o que sempre foi: um pinto abençoado por Deus.

 

 

Bronheta

Na sexta, Joaquinzinho já estava meio cansado. De férias escolares, ele não tinha nada pra fazer, só batia punheta.
No primeiro dia sem aula, pensou em jogar bola. Não encontrou nenhum amigo. Ficou assistindo novelinha da tarde no canal de televisão sem graça. Tinha umas gostosa… bronha. Intervalo, comercial de sabão em pó… bronha. Filme de cachorro… bronha. Desligou a tv, não aguentava mais. Deitou na cama no escuro. Começou a rezar. Ave Maria, cheia de … bronha. Porra (literalmente), virou uma obsessão. Da janela do quarto, que ficava no terceiro andar, observou a rua. Fim de tarde, um monte de gente voltando pra casa, só muié de sacola, sacolejando… bronha.
Já tinha sido umas cinco, que dia perdido (ou proveitoso?)! De qualquer forma era um treinamento. Um treinamento natural. O que regeria sua vida adulta. O manual de instruções interno e eterno. Todo macaco descascava banana. Evolução, pensou Joaquinzinho e partiu pra sexta sem imaginar nada, punheta in loco no vácuo mental. O primata flutuando no espaço, na bronha infinita, originando a via láctea espessa e pegajosa; o big bang da porra!
Nesse dia foi bronha pra cacetada!
Hoje, Joaquinzinho é velho e continua sendo um praticante fiel do bronhismo. Doou porra pra tudo quanto é lado. Tem uns par de filho espalhado por aí. Não quer saber de nada, só quer continuar bronhando nessa vida porreada.

 

 

Solão

O dia estava ensolarado. Juvenal andava sorrindo. A calçada brilhava ardentemente e os dentes de Juvenal pareciam lampadazinhas fluorescentes, cintilantes e alvas como as almas albinas dos mártires mortos pelos romanos no verão de 65. Tudo na rua parecia resumir-se em tranquilidade e sobriedade. Tanta normalidade que até doía! Alguns carros passavam flutuando no asfalto negro e fervorento que soltava finas fumacinhas capazes de entortar a vista do observador atento e preguiçoso. O transcorrimento era perfeito! A vida ia e vinha, indo e vindo sem cansar, sem enjoar, parecia drogada. O meio-dia encontrava-se com o meio-fio numa explosão de luz, calor e odor fumacento. Insetos não aguentavam ficar no chão, simplesmente pulavam para o alto tentando escapar do inferno cinza que chamuscava suas patinhas minúsculas. Juvenal continuava a sua senda, assoviava e assoprava o ar que passava por baixo de sua língua criando uma sensação de frescor e fazendo cócegas. Isso fazia ele arrepiar, no bom sentido. Quase ninguém na rua, apenas uns velhos que saíam pra passear com os cachorros linguarudos, balançantes, arquejantes e babantes. Os burburinhos ou eram de moscas ou de abelhas. Dava pra ouvir o voo do passarinho longínquo, que parecia miragem. Dentro dos lares: os almoços começavam, as bundas sentavam, as bocas bocejavam e abriam-se para não cessarem de tagarelar até o outro dia; gases diversos, alguns reprimidos, outros não; garfalheira e facangueira destrinchando o frango; macarrão à beça; molho transbordante; maionese harmoniosa; refrigerante na geladeira. Tudo isso era familiar a Juvenal. Estava acostumado aos domingos, até acordava cedo. Por todas essas razões, andava seguro de si e confiantemente arfava com o peito, executando uma pequena dança representante do triunfo plenamente individual, engolfado em si mesmo. Faltava pouco pra chegar em casa, a volta terminaria em questão de minuto. Um barulhinho de trinta segundos atrás foi tornando-se um barulhão contínuo e crescente. Um zunido, como de bomba. Congelado, Juvenal esperou a explosão. Mas não houve explosão, houve sim um splat! Um som curto, estalante, estatelante, empastelante, como um tapa gigante! Doeu no ouvido. Era uma águia dourada de cabeça chata, que agora estava espatifada, ensanguentada, despedaçada e achatada no chão da calçada. Metros e metros de um vermelho vivo refletiam a incandescência fulgurante do solão no calçamento. Domingueira, pensou Juvenal.

A História do Estrogonofe

A mulher estava cozinhando uma carne picada na panela. Chega o marido bêbado e vomita na panela.

A mulher então berra: Estragô Onofre! Filho duma égua! Estragô Onofre!

O vizinho ouviu e anotou num papelzinho. Mais tarde, patenteou.

 

Feijoada de 1956

A feijoada não pode ser aguada.

Ele tem que ser encorpada.

Paio, linguiça, couro, carne seca, costelinha, orelha, joelho, rabo.

Tem que ser encorpada.

É raro encontrar uma feijoada encorpada. A generalizada está em voga. Não fazem mais feijoadas como as de 1956.

Lembro-me de uma vez em que comi uma feijoada em 1956. Encorpada. Espessa. Duma cremosidade ímpar. Fumegante. Numa panela gigante. As pessoas fungavam em volta do caldeirão. Olhos lacrimejavam-se. Mentes enchiam-se de desejo e fúria por um prato imediato. Bocas molhavam-se com saliva excitada. A fala acabou. Não há conversa. Apenas contentamento.

Salsicha com Molho e Ovo

Salsicha ao molho e arroz e feijão. Bom pra caramba. Adoro essa bela combinação. Muitas vezes, acrescentam-se alguns ovos. As salsichas, picadas, flutuam ao lado dos ovos inchados, prósperos e implodidos no suave lago do invencível sumo do tomate. Nestes dias de frio não há nada melhor do que essa mistura. O molho quente cai no estômago como um elixir que cura as dores da alma e da fome. Isso é real.



Omelete com Carne Moída

Carne moída e omelete. Nunca havia pensado nessa combinação antes. Comi hoje. Num marmitex. Tava bom. Carne moída com legumes. Omelete com ricota. Taí outra combinação que eu não imaginava, nunca havia me passado pela cabeça. Isso mostra que as combinações podem ser infinitas. Mistura. Arroz, feijão. Creme de milho é bom também. Filé de frango à milanesa pode ser considerado o melhor de todos. Gosto muito de um canelone aos quatro queijos também. Me incita uma farofa. Me regala uma torta de frango. Me assusta não fazerem mais pizzas como antigamente.

 

 

A Teta da Panceta

Passou a noite acordado. Já era umas oito da manhã quando pensou no que comer pro café. Desceu no supermercado. Pegou uns pães, mussarela. Foi pra parte das carnes. Linguiça, presunto, bife… não. Pedia outra coisa. Viu uma panceta, brilhando como o ouro das minas do Rei Salomão. Tava muito bonita. Pegou.
Chegou em casa, tirou os pães do saco, o queijo do papel e foi desembalar a panceta. O que?! Não tinha visto antes, foi só virá-la e do outro lado viu uma coisa que o surpreendeu. Tinha uma teta! Uma teta na panceta! Uma tetinha pequenina, mas uma teta mesmo. Caraio, uma mama na panceta! OK, vamo botá na frigideira e vê no que é que dá! Fritou a pancetinha tetuda, tacou queijo em cima, colocou no pão e foi comer na frente da televisão.
Tava bom pra caraio, gorduroso que nem o inferno! Gotinhas de óleo pingavam pela barba por fazer de nosso herói glutão. Comeu três sanduíches, o último foi o da teta. Era meio borrachenta, mas nada de extraordinário. O gosto era normal e procurou encarar a protuberância, incomum em tal peça, como os pelos que sempre encontrava nessa iguaria deliciosa do porco. Comeu bem e tudo.
Uns quinze minutos depois, no meio do programa da Ana Maria Braga, começou a sentir uma queimação e umas dores desconfortáveis. Precisava cagar urgente! Foi correndo pra privada e soltou um jato que inundou a piscininha sagrada e deixou umas borrifadas nas beiradas do vaso. Aliviou-se. Achava que tudo tinha acabado, mas estava enganado. Uma nova onda de tremor fecal formou-se em suas entranhas. Parecia um terremoto, que logo iria tornar-se um maremoto marrom e melado. Mas, não foi bem assim. Os tremores continuaram, sua barriga ganhava vitalidade além da conta. Todo o seu avantajado abdômen balançava que nem uma maria-mole ao ritmo da lambada. Preparou-se para a segunda rajada e não imaginou o que estava por vir. Veio a onda de merda, mas não era uma merda comum. Uma torrente esbranquiçada e leitosa jorrou do seu cu assustado. Encheu o trono até a borda. O sujeito virou-se e observou sua obra máxima com repugnância e fascínio mútuos. Parecia um caldeirão de canjica, mas sem canjica e só com o caldo duma cor que variava entre o tom de leite e o de chocolate, uma espécie de doce-de-leite fétido e borbulhante. E borbulhava mesmo; bolhinhas cresciam e estouravam espalhando micro-gotas pegajosas pelo banheiro inteiro e por toda a cara de nosso herói atônito. Continuou olhando, com a boca aberta, o espetáculo que apresentava-se diante do seu nariz, que nem sentia mais cheiro, tamanha a monstruosidade do fedor que preencheu o ambiente, quente e vaporizado. O espelho do armário da pia estava completamente embaçado, refletindo um esboço granulado e enfumaçado da porta do banheiro fechado. No lago leitoso, nosso amigo identificou alguns movimentos, movimentos ondulatórios que, aos poucos, formavam uma imagem. Espantado, o sujeito olha com atenção a forma que se revela diante de sua retina aterrorizada e meio melada de merda. Movimentos circulares criam um redemoinho que logo transforma-se num rosto, um rosto diferente. Tem olhos, sim, boca, sim e uma fuça, sim. É uma face… uma face suína, que ri e manda beijinhos alegres no meio do turbilhão lácteo que inundava a privada, numa enchente digna de filme catástrofe. O cara não acreditava no que via, sentia, cheirava! Por quê?! Deus?! O que será?! É a teta, só pode ter sido a teta! Foi ela, ela sim; de alguma forma soltou o seu leite materno e fermentou meu estômago, causando uma revolução intestinal que transformou-se num monstro, num demônio que veio aninhar-se no meu vaso sanitário! E neste momento de reflexão e fúria, o rosto da privada confirmou a epifania de nosso herói esmerdeado, numa voz tão poderosa quanto gutural e cadavérica: “Sim, vim do leite e ao leite retornarei. Mas antes tu deves anunciar à humanidade que a salvação encontra-se aqui. Nunca dê descarga!” E assim nosso amigo recebeu a mensagem divina e ficou paralisado no centro do banheiro, até que a voz levantou-se novamente e proferiu esta ordem: “Vai meu filho, sai pelo mundo e conta a tua revelação aos teus semelhantes. Faz deste lugar um templo, traz aqui os crédulos, os fiéis, os bravos de espírito.” E ele foi, e esta é a história que começou tudo.

 

Braço Cigano

Um dia absurdo em que um monte de merda aconteceu (nem tanto).
Josiberto estava andando na calçada e topou com uma barraquinha diferente. Nela vendia-se uma montoeira de salgados artesanais. A dona da barraca era muito sorridente e exibia suntuosos dentes de ouro. Falava alto e rápido. Por vezes, cuspia e a gotícula de saliva iria parar gelidamente na bochecha de Josiberto. Sentia um frio na espinha e um arrepio no ânus toda vez que isso acontecia.
Ela foi mostrando a variedade de salgados. Todos vistosos, encorpados e levemente dourados. Era bonito de se ver.
“Esta aqui é uma coxinha especial, este é um bolinho de queijo recheadíssimo, esta é uma bela esfirra, aquele ali é o braço cigano…” Braço cigano?! Braço cigano?! O que é isso?! Josiberto engoliu em seco. Ficou um pouco assustadiço e notou que iria ter um daqueles seus famosos ataques de ansiedade. Tremeu e criou coragem para perguntar num sussurro que mais pareceu um peido enfraquecido por um intestino velho e desgastado: “Mas, mas o que é o braço cigano?” A mulher olhou pra ele com uma cara interrogativa e depois de alguns segundos irrompeu numa gargalhada que resultou numa metralhadora de cuspe bem na cara de Josiberto. “Ha, haaaa, ha, haaa! Mas você não conhece não filho? É o braço cigano. O recheio é de presunto, queijo e tomate. É uma delícia, a massa é muito gostosa! É o melhor salgado assado que existe!” Ah, é tipo um enrolado de presunto e queijo, só que com outro nome, refletiu ele. “Sim, sim, hehe, me vê um então.” “É pra já!”
A dona pegou o salgadão e entregou rapidamente a Josiberto. “Pode comer, é muito bom, mas cuidado que tá quente!”
Com um risinho acanhado, Josiberto mordeu o braço cigano e ficou muito satisfeito com o sabor. “É bom mesmo.”
“Mas, meu filho, você sabe porque chama braço cigano?” “Não.” “É uma bela história. No Domingo de Ramos, um cigano, que tinha bebido um pouco além da conta, arranjou uma briga com um nordestino, bem no meio da praça. O nordestino era bom de peixeira, arrancou o facão e decepou o braço esquerdo do cigano. Aí acabou a briga, mas, vendo o membro estirado ali no chão, meio aberto, com sangue pra todo lado, umas peles pra cá, outras pra lá, uns talhos bem grandes, vermelhos, sulcos profundos, pus, os anéis tilintando ao sol (as pulseiras de ouro sumiram na hora), vendo tudo isso, Seu Joaquim da padaria logo teve uma ideia pra um salgado bem caprichado. Fez o tal do braço cigano, comeu, vendeu e fez um baita sucesso! Isso foi lá por 1920.”
Josiberto ficou espantado com a história da dona (que mais parecia uma professora de história do que uma vendedora de barraquinha de salgados). Terminou o salgado, pagou, despediu-se e foi embora, rumo a sua humilde casa.
De madrugada, lá pelas 4 horas, sonhou com o cigano, ele tinha um sorriso perverso e maldizia Josiberto e o seu futuro. Acordou com um gosto azedo na garganta.