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Os Navios do Porto

Meu bisavô, a quem eu adorava, envelheceu junto aos seus discos de Vivaldi. Era um homem que conseguiu se desembolar de si ao longo da vida, o que o fez deixar a juventude de maneira espirituosa, assim como as melodias do seu músico predileto. Numa tarde chuvosa de domingo, ele me contou sobre os navios do porto. Escolheu sem pensar um vaso qualquer para olhar e sua visão ultrapassava o objeto para enxergar algo que minha vista não alcançara. Ele disse coisas que só mais tarde eu entenderia. Minha lembrança é turva, mas tenho comigo o saber de que naquela tarde, eu aprendera coisas importantes sobre a vida. Lembro-me de quando se foi o meu bisavô. Penso que somos acometidos muito cedo por uma falta e a medida que crescemos, vamos nos curando de uma espécie de 'limitância' na consciência a qual não gostaríamos. Começamos a buscar tatear onde nem podemos colocar nossas mãos.
Esse ano nasceu meu sobrinho Gustavo. Quanto contentamento se instaurou nos peitos de minha família. Intrigo-me, até, ao refletir como pode a chegada de alguém ser sinônimo de tanta felicidade. Também estou exultante e desisto de qualquer resposta pois, meu bisavô, que amava crianças, certamente defenderia que coisas como essa não devem ser explicadas e sim, presenciadas. Afinal, quando nossos olhos assistem a partida dos navios mar adentro, somos inebriados pelo desejo de pular a vida até o momento em que eles atracarão no porto novamente. A vida é um grande pêndulo que ora bate um sino e ora bate o vento. Lembro-me de quando se foi meu bisavô, de quando se foi, também, aquele primeiro rapaz... de quando se foi o Haroldo, meu cachorro. Todas essas vezes eu precisei renascer de dentro da minha própria vida. E aí, feito serpente, me faço novamente com a matéria prima de mim. Nesse momento, também parto de mim. E paradoxalmente, me reencontro. Então, se a vida, de certa forma, é uma grande ida pra não se sabe onde, e de alguma maneira, ainda que não sejamos o ponto de partida, terminamos em nós, que tolice seria querer cessar as partidas e as chegadas. No final, talvez, devessemos nos perceber como um porto: repletos de fantasmas, lembranças, marcas, idas e vindas. Símbolo de ínicios e encerramentos. De repente, descobrimos que ir e vir não são assim, tão desconhecidos. Ao contrário, são irmãos. O que os difere é a lembrança. E se lembro, vivi. E no final, isso é tudo o que importa.

 

lLucasJ1 - Iron Hotel